terça-feira, 20 de dezembro de 2011

sábado, 17 de dezembro de 2011

"Qualquer amor é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."*

* João Guimarães Rosa

Fotografia: F.S.S.

M a n h ã s

 Hoje canto versos
Pelos dias e amigos
Que conhecemos e vivemos
Mas se de onde estiverem,
não ouvirem, entenderemos,
Pois cada um é peregrino das suas escolhas
E tantas são as opções.
Caminhamos todos os dias
E em todas as vias.
Nossas despidas vozes pedem passagem.
Nem é preciso
Ter tanta coragem.
Vem os irmãos, as irmãs, vão nossos filhos.
É preciso plantar flores!
E flores são utopias escondidas pela estrada.
Não é preciso escondê-las,
nem temê-las, nem engoli-las à seco
Que seja tinto o nosso vinho
E nos acompanhe na alegria
Ó companheiro! Ó companheira!
Ora a confissão, ora revelação do âmago.
É preciso galgar palavras,
É preciso dizer com o nu de nossa voz.
Reviver a inquietude
que assola a indiferença.
Que seja luz enquanto dia
Que seja noite enquanto trevas
Que a palidez seja apenas sombras.
Não temamos a descoberta das paixões
Que sempre nos surpreende
E às vezes, nos coloca na retaguarda,
Cogitando um mundo inabitável.
Mas quem irá para Pasárgada
Se o nosso refúgio é o universo do outro?
O outro nos completa, nos espelha,
Nos reemenda, nos habita,
Nos compõe em verso de cores.
Floreia a alma da gente
A frente do teu perfume.
Flores são utopias
Reveladas em teus lábios.
Chá de cidreira, ar de cerejeira,
Tudo a beira do rio
Até que a manhã seja revelada
E o amor rotineiramente nos renove
Cada vez mais belo,
Cada vez mais sábio!

Fabiano Soares da Silva

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

"Às vezes dá certo"

Em uma de minhas aulas de alfabetização de jovens e adultos da favela da Maré, depois de discutir sobre migrações no Brasil, propus que escrevêssemos a nossa história de vida, relatando como chegamos ao lugar onde vivemos.  Tinha planejado a aula, por isso nada poderia dar errado, até que, duas alunas não quiseram participar da atividade, alegando ser incapazes de realizar aquela tarefa e que seria melhor que eu fizesse ?cópia? para que elas pudessem reproduzi-la, pois assim aprenderiam muito mais.  Passamos então duas semanas discutindo o assunto.  Eu tentava convencê-las do contrário, dizendo quanto perdemos quando lançamos mão da cópia.
Fizeram a atividade, e no final da aula, Erly, uma aluna de 69 anos, me dizia: «estou muito cansada, filho, não dá pra ficar insistindo numa coisa tão difícil de fazer, não tenho mais nada a perder, por isso, estou pensando em ir embora, você insiste numa coisa que não dá, faça ?cópia?, oras!».
A escola que Erly acreditava/conhecia, era uma escola de cópia, feita de cópia. E que, sem isso, não podia ser escola.  Enquanto ela argumentava, eu tentava entendê-la, para dizer a ela que podia ser o contrário, que podíamos fazer diferente.  Mas ela insistia.  Me entregava as suas palavras pensando no quanto eu estava impondo um outro modelo de escola que não substituiria, de uma hora para outra, os anos que ela acreditou no que era escola e como deveria ser.
Erly tinha razão. A ?cópia? era muito importante, mas o que ela não sabia era que a cópia só podia ser importante, quando a resignificamos.
Nessas horas estávamos a caminhos de nossas casas e ela retrucando: «faça cópia filho! » Então eu disse a ela:«- Então tá, dona Erly, vamos fazer uma cópia, vamos tentar fazer uma cópia diferente.  Tente copiar aquilo que está dentro de você, dentro de sua cabeça e que ninguém pode copiar, pois só a gente sabe o que é que tem lá dentro
 Erly me olhou espantada sem dizer uma palavra por alguns segundos e em seguida completava: «Então tá professor, vou embora descansar, porque estou com muita dor nas costas e talvez não venha amanhã».  Nos despedimos.  Fui embora com o pensamento vago, pensando não ter sido capaz de entender Erly, deixando-a mais confusa do que estava.
Passou uma semana sem a presença de Erly.  Um dia, ela reapareceu pedindo a atenção para mostrar o que tinha feito em seu caderno. Disse que havia pensado no que eu tinha lhe dito na semana anterior e que tinha feito o que eu havia pedido. Tinha nas mãos um pequeno poema, que dizia ter muitos erros.  Perguntei se ela poderia ler com sua própria voz para que todos ouvissem.  Ela concordou, e leu a sua cópia feita de suas manhãs vistas pela janela de sua casa.
O seu rosto de sorriso largo denunciava que estava feliz e isso me contagiava e a seus e suas colegas que se sentiam a vontade para escrever outras histórias.
Penso que, Erly tenha entendido que é possível fazer uma escola diferente. Mas poderia não ter entendido, poderia não ter voltado. O fato é que por mais que eu intencionasse a busca desse novo sentido, acertei por acaso, ?sem querer?, como dizem as crianças.  E assim, estávamos nós aprendendo, cada um a seu modo, o que poderíamos não ter descobertos. Mas enfim aprendemos, sem querer ou por querer, confirmando o que dizem os olhares atentos ao cotidiano da escola e que tanto tem valorizado essa história, ?às vezes dá certo?, e isso acontece, porque entendemos que é de repente que a gente aprende.
Continuamos trabalhando esse poema e reescrevemos atentando para a ortografia, mas a beleza do poema não reside na correção, está na originalidade de Erly.



Poema da manhã
que lindo dia da manhã
as crianças andando descalças pela praia vendo o sol nascer
que lindo dia da manhã
os passarinhos cantando nos galhos das árvores
que lindo dia da manhã
as rosas se abrem, as borboletas voando, os beija-flores se beijando
que lindo dia da manhã
a gente vendo o bondinho do Pão de Açúcar
que lindo dia da manhã
a gente vendo o cristo de braços abertos abençoando o Rio de Janeiro
que lindo dia da manhã.
(Erly de Oliveira Carvalho)
Rio de Janeiro, 9 de junho de 2005



Publicado na Revista portuguesa A Página da Educação, em maio de 2006 -  http://www.apagina.pt/ 
"Às vezes dá certo", Fabiano Soares da Silva.  N.º 156, Ano 15, Maio 2006, Página n.º 18